Já não bastasse a polêmica daqueles que não entendem que área urbana é diferente de área rural, cujos regimes jurídicos constitucionais se lastreiam em princípios e regras distintas, a teor dos arts. 182 e 186 da Constituição, agora, atuação sustentável dos Municípios em Área de Preservação Ambiental (APP) urbana tem novos algozes: os intérpretes meramente gramaticais e que não enxergam o direito como sistema. Para estes, com a nova lei, os Municípios podem alterar e diminuir as faixas destinadas à APP, uma vez que a norma não contempla, expressamente, o bem jurídico, natural ou artificial, lagos.
De logo, Carlos Maximiliano, na introdução ao seu magnífico Hermenêutica e Aplicação do Direito, doutrina: “A hermenêutica jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis do direito, para determinar o sentido e o alcance das expressões de direito”.
Neste passo, inicialmente, vale resgatar que a Lei n º 14.285, de 29 de dezembro de 2021, que altera as APP (Áreas de Preservação Permanente) urbanas, devendo abrir espaço para novos empreendimentos às margens de cursos d ‘água (confira os fundamentos de sua constitucionalidade aqui. Antes dela, o Código Florestal estabelecia as normas gerais sobre a proteção da vegetação em área de preservação permanente (APP), de forma igual e indistintamente, à tão diversificada realidade dos mais 4mil Municípios, atropelando as peculiares, vocações e funções sociais de cada cidade.
A lei acabou com a distinção entre APP urbana e rural. Mas agora, uma interpretação pedestre e rasa da norma propõe que ela criou outra nova desigualdade: APP urbana de rios, com normas menos restritivas x APP urbana de lagos, com normas iguais a das áreas urbanas. A simples comparação mostra o absurdo da tese: não tem como permitir ao Município reduzir APP em rios e não em lagos, pois os rios são bens jurídicos naturais que gozam do mais amplo grau de ecossistema, com interfaces, inclusive, com o berço da vida, os manguezais. Já os lagos, muito deles sequer naturais, tem ecossistemas menos complexos e de menos potência.
Mas defender mudança em APP urbana de rio e argumentar que a lei não autoriza nos lagos, não é só uma aberração do ponto de vista da ecologia, biologia, razoabilidade, lógica. É também jurídica. Primeiro porque faz uma interpretação meramente gramatical da nova lei, sem encaixá-la no sistema e compatibilizá-la com as demais normas que tratam de APP em rio e em lago, as quais sempre foram mais restritivas com os rios, não podendo essa antinomia e assimetria ser, agora, gerada por uma falha de técnica legislativa de uma lei ordinária.
Depois, viola a lógica. Não tem racionalidade alguma lógica autorizar o mais, isto é, intervenção normativa em APP de rios, e vedar o menos, a saber, fazer o mesmo em Lagos. Pense no absurdo hipotético - que pode ocorrer na prática - desta tese frágil e inconstitucional tese rasteira: o Município poderá reduzir, por exemplo, para 5 m a margem de APP urbana do grandioso Rio São Francisco, com 500 m de largura e 100 de profundidade, com milhares de vidas, nascentes, afluentes, e que “vai bater no meio do mar” mas terá que manter em 15 ou mais a do lago “João Gramatical Raso”, com 10 m de cumprimento e dois de profundidade, sem sequer mais de uma espécie de peixe no local.
Ademais, viola a interpretação teleológica: a saber, aquela segundo a qual a norma deve ter uma finalidade, coerência e sentido. A finalidade é extirpar margens de rio urbano ou corrigir a incidência equivocada de norma rural para áreas urbanas? É coerente intervir ambientalmente em rio e não em um lago? Tem sentido mudar o regramento para todos os cursos d'água, menos de lago, só porque o legislador esqueceu de escrever essa palavrinha? É a resposta é não. Daí porque o gramaticalismo cego de , desde Savigny, no Século XIX, a aplicação meramente gramatical da norma foi superada, existindo diversos métodos de hermenêutica que, metodologicamente, devem ser aplicados, notadamente o lógico, o sistemático, o finalístico e o que impede incoerência, assimetria e conflitos no sistema.
Então, diriam os intérpretes meramente gramaticais da norma, isso é criacionismo, inseguro e viola a legalidade. Bem, uma boa navegada pela teoria geral do direito, das normas, da constituição e do direito administrativo, responde a mais esse equívoco. Segundo a lei (legalidade), veja-se, a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” Além disso, “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.” Não faz sentido permitir que um prefeito contrate um plano de áreas protegidas urbanas para rios e outros cursos hídricos, e exclua deles somente os lagos.
Ainda segundo a lei (legalidade), desta feita a de Liberdade Econômica, “Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.” Só alguém de má-fé (ou por erro escusável) e que tem projetos perto de rio – prefeitos, promotores, advogados ou empreendedores, para conceber e aceitar redução de APP neles, mas não nos lagos.
Demais disso, não se justifica a intervenção legislativa em concreto, para atividades específicas, no domínio econômico sem que haja qualquer prova de violação da atividade do Autor ao interesse público. IVES GANDRA MARTINS, com a propriedade que lhe é peculiar, assim discorreu sobre a liberdade de contratar inerente ao particular: “(…) numa economia de mercado, consagrada pelo texto constitucional, a livre concorrência e a livre iniciativa impõem aos agentes econômicos a escolha da forma de cobrar seus produtos e serviços, não podendo o estado interferir nas regras do jogo econômico, senão para evitar abuso e garantir o consumidor no que diz respeito à qualidade dos produtos e suas condições de comercialização, matéria de exclusiva competência federal e já reguladas pelas leis 8078/90 (código do consumidor) e 8884/94 (lei antitruste).”
(Comentários à Constituição do Brasil, vol 7, p. 16)
Por que o proprietário de imóvel ao lado do lago vai ter uma intervenção legislativa mais rigorosa do que o do rio? Não faz sentido. Essa inusitada interpretação gramatical que exclui os lagos urbanos do objeto de incidência das leis urbanas contempla repreensível e odiosa desigualdade. Esta se produz quando a norma do seu art. 1º, 2º e 6º distingue, sem qualquer base científica, sem racionalidade, de forma não razoável e arbitrária um tratamento específico a uma atividade sobre um mesmo bem, curso hídrico, só que mais restritivo para o que tem menor risco e relevância ambiental ecológica. Erro do legislador que o aplicador não pode cometer.
Veja-se, ademais, que, como regra e por obviedade, a intervenção, em APP urbana de lago tem muito mais baixo risco que em de um Rio. E a Lei, a lei ambiental e de liberdade econômica, ecoam, em clareza solar, que devem incidir normas menos restritivas e maior liberdade, inclusive legislativa e administrativa, quando se envolver atividade econômica de baixo risco. E mais, pela igualdade, direito fundamental, e pela lei, sim, pela legalidade, os empreendedores devem “receber tratamento isonômico de órgãos e de entidades da administração pública quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica, hipótese em que o ato de liberação estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores”. Fica claro, portanto, que é a interpretação pedestre, rasa, rasteira, meramente gramatical, que viola a legalidade em sentido estrito, pois geraria, ao arrepio da Constituição e das leis, maior e injustificável ônus aos lindeiros de lagos do que aos de rios urbanos, sem isonomia, sem necessidade, sem adequação, sem utilidade, sem razão jurídica, técnica e ecológica.
Por falar em necessidade e adequação, tem-se um robusto argumento a favor da incidência da nova norma aos lagos e contra o aplicador gramatical da norma. Refere-se aqui ao devido processo legal substantivo, que, vai além do formal e, poucos se atentam, aplica-se ao processo legislativo, administrativo e ao judiciário, não somente a este.
Com efeito, a garantia do devido processo legal possui uma dupla dimensão, a saber, a processual (ou formal) e a substantiva (ou material), elencadas no art. 5º, LIV, da Constituição Federal.
No aspecto formal, impõe a observância de todas as garantias procedimentais inerentes ao modelo de processo, administrativo ou judicial, estabelecido pela Constituição e normas infraconstitucionais. Já o aspecto material, determina que o exercício dos poderes do Estado, incluindo-se o legiferante, se dê mediante meio mais idôneo ao alcance do fim visado pela norma, menos oneroso possível ao cidadão e de forma a que as vantagens verificadas com o emprego daquele meio legal superem os prejuízos advindos da restrição infligida.
Neste sentido é que se estruturam os denominados princípios da proporcionalidade e razoabilidade, enquanto princípios constitucionais insertos à garantia fundamental do devido processo legal substantivo.
Em festejada monografia acerca do princípio da razoabilidade das leis, Siqueira de Castro, disserta com propriedade que: "A norma classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo, ao revés operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidade constitucionalmente válidas. Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de identidade entre meio e fim – mens-end relationship, segundo a nomenclatura norte-americana da norma classificatório – não se fizer presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na falta de “razoabilidade” e “racionabilidade”, vez que nem mesmo ao legislador legítimo, como mandatário da soberania popular, é dado discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses da sociedade política. […]Afasta-se, assim, o totalitarismo na tomada de decisões capazes de interferir com a esfera de liberdade ou com os bens individuais dotados de utilidade social. Por exigência insuprimível de limitação de mérito ou de conteúdo das decisões de caráter normativo, à nenhuma autoridade constituída, nem mesmo ao legislador legitimamente investido da representação política, é dado deliberar de forma arbitrária e incondicionada. […] Tais limites são sobremodo necessários no contemporâneo Estado intervencionista, onde a autonomia dos indivíduos e da coletividade são alvo permanente de um poder regulamentar voraz e difuso. A intervenção do Estado nas relações sociais e econômicas enfatiza a necessidade de se imporem às regras de direito padrões limitadores do arbítrio ou do puro capricho, exigindo-se, enfim, uma receita de coerência e da plausibilidade na atuação do editor normativo, esteja ele sediado no Poder Legislativo ou nas multiformes agencias do Executivo. Com isso, os atos do Poder Público curvam-se aos reclamados da razão, sujeitando-se, em seu mérito, ao questionamento quanto à congruência entre meios e fins, que deve cumpridamente fundamente a intromissão estatal na esfera de autonomia privada."
(O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. p. 145/147)
Numa sentença: o princípio da razoabilidade (/proporcionalidade), que concretiza a garantia do devido processo legal substantivo, impondo limites à discricionariedade do exercício da função estatal de editar normas gerais e abstratas reguladoras das condutas sociais que impliquem tratamento homogêneo para situações distintas ou diferenciado para situações assemelhadas, tem sua aplicabilidade intimamente relacionada à igualdade substancial como valor edificante do Estado Democrático de Direito.
Noutra banda, o princípio da proporcionalidade, também denominado de proibição do excesso, materializa a prescrição constitucional segundo a qual os direitos e garantias fundamentais devem sofrer a mínima restrição possível. Disto decorre que todo ato jurídico, tal qual os atos legislativos como o da espécie em debate, deve ser sempre adequada e necessária, sob pena de incidir em vício de constitucionalidade por violar o devido processo legal substantivo. Em suma: a verificação da observância desse princípio decorre da conclusão de que, diante de uma determinada situação, nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Ao analisar acerca observância de tal princípio, dever-se-á ter em conta a certeza da inexistência de outra medida menos gravosa – menor restrição – e concomitantemente apta para lograr o mesmo ou melhor resultado – meio mais idôneo. Portanto, a aplicação do princípio da proporcionalidade e razoabilidade em concreto determina que toda intervenção legislativa sobre direitos e garantias individuais – como ocorre na lei em debate sobre a propriedade e segurança jurídica – deve observar se existe uma relação de equilíbrio ou proporcionalidade entre o sacrifício imposto ao titular do direito individual objeto da restrição e os resultados pretendidos pelo legislador.
E veja-se, no caso em debate a norma não vedou a intervenção em lago. Não há dúvidas sobre a intenção do legislador. Não há dúvidas sobre a técnica e a racionalidade da questão. O que houve foi um lapso, um erro, uma omissão, pois, ao tratar de cursos hídricos urbanos, o legislador esqueceu de apor a palavrinha "lago", pois outra razão não justifica essa grave omissão. Assim, o que se faz não é criar uma autorização para intervir em lago, ela já vem juntamente com as demais descrições da norma, pois não tem razão nenhuma, nem lógica, nem jurídica, nem ecológica, para ficar de fora, nem, tampouco, haverá prejuízo à tutela do meio ambiente, ao sistema jurídico ou a sustentabilidade. Pelo contrário: se não pode intervir em lago urbano, sorte melhor não pode ter a intervenção em rios, o que pode levar à perder toda uma norma dada essa antinomia. De rigor, desta forma, corrigir esta antinomia, assimetria, incorência aparente, como diriam Kelsen, Lourival Vila Nova, Ataliba, e como determina a Constituição e demais normas citadas.
Tem mais: questão pragmática e aos advogados raiz, não os de gabinete! Se o Município, para discriminar as faixas de APP urbanas, levarão em consideração o Plano da Bacia, como excluir os lagos e lagoas do Plano, desconsiderando que a Bacia se perfaz pelo todo e não pela exclusão de qualquer coleção hídrica?
De mais à mais, a competência e a responsabilidade pelo uso do solo urbano é dos Municípios, independentemente do código florestal ou de autorização desta nova lei, como manda os arts. 30 e 182 da Constituição, já definido pelo STF e desenvolvemos em outras oportunidades, incluso em nosso Curso de Direito Urbanístico e das Cidades sustentáveis (compre aqui)
Resumindo e concluindo: Município pode disciplinar a APP Urbana de rios e também dos lados. Isto porque, a APP dos lagos são objeto de incidência da lei Lei n º 14.285/21, pela legalidade, igualdade, devido processo legal, além da não citada, mas cabível, eficiência, bem como pela hermeneutica jurídica determinada pela legislação nacional, assim como pelos termos do art. 182 e 186 da Constituição, pelo Estatuto da Cidade, Lei do Parcelamento do Solo, pela Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, pela Lei da Liberdade Econômica, em detrimento da pedestre, rasteira, rasa, ilógica, antissistemática e ilegal aplicação meramente gramatical do texto (ou omissão de texto) do legislador.
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